Critérios diagnósticos para o transtorno de conformidade neurotípica
Pensando sobre ser neurodivergente num mundo de neurotípicos para neurotípicos.
Demoraram 33 anos para que eu descobrisse que sou uma pessoa neurodivergente.
Sim, sou Autista, com TDAH e também Superdotação, uma tripla excepcionalidade.
E tem sido uma jornada louca entender coisas que antes eram invisíveis sobre mim.
Por exemplo: eu sempre tive crises, mas eu lia isso como eu sendo uma pessoa fraca que não sabia viver no mundo ainda e precisava crescer. (Percebem a agressividade das cobranças que eu me fazia?).
Quando eu tinha crises explosivas eu lia isso de modo a me ver como uma pessoa ruim, que precisava buscar algum tipo de iluminação para parar de agir assim em momentos "‘””pequenos”””.
Fiz muita análise para entender minhas dificuldades, e porque para mim era tão difícil flexibilizar coisas que para todo mundo parecia tão ok.
Por conta da superdotação meu pensamento filosófico é muito forte, e a psicanálise tocava bastante nesse ponto para mim, então fazia sentido em vários aspectos. Mas em determinado momento fui confrontada com a percepção de que não importava o quanto certas coisas racionalmente não deveriam ter tanta importância ou podiam ser vistas por outra perspectiva, elas continuavam me fazendo mal de um jeito tão intenso que eu adoecia.
Sempre adoeci. Muito. Desde muito pequena.
Isso foi interpretado pela psicanalista como uma maneira de fugir dos problemas e não crescer. Então eu me esforçava mais e mais para provar que eu dava conta sim, tentando muito não adoecer. Em vão.
Até que em um momento de extrema sobrecarga e adoecimento psíquico procurei outros especialistas, que depois de muitas avaliações e testes e etc etc etc puderam dar nomes para tudo aquilo que sempre esteve aqui e eu nunca tinha tido recursos para nomear.
E passei por um luto intenso, por tudo aquilo que eu achava que com muita análise eu conseguiria vencer, deixar de ser como era, que eu chegaria em algum momento onde não seria mais tão difícil assim.
Entender que muitas coisas continuariam sendo difíceis doeu.
Mas agora consigo entender perfeitamente porque eu escondi até de mim mesma o quanto me sentia diferente e esquisita, o quanto disfarçava meus incômodos e minha dor, o quanto me esforcei desde muito pequena pra corresponder ao que esperavam de mim, para não reclamar, me escondendo -literalmente- pelos cantos e ficando apavorada quando tinha algum indício de que alguém percebeu que eu era uma farsa.(Alô TAG)
O mundo é feito de neurotipicos para neurotipicos, e toda a organização social é voltada para apenas um tipo de funcionamento.
O problema não é e nunca foi ser como eu sou, o problema é ser como eu sou vivendo num mundo que não foi feito para que eu consiga viver bem nele.
MUITO pelo contrário, diga-se de passagem.
Pessoas neurotipicas não só não tem IDÉIA de como é ser neurodivergente, como detestam diferenças.
(Eu sei que NEM TODOS, mas aqui vou falar de maneira generalista).
Às vezes acho que os neurotipicos se ofendem com nossas questões sociais porque são também eles obrigados a certas conveniências, para estar em sociedade, eles também precisam se esforçar para ser simpáticos e falar que gostaram de coisas que não gostaram. A diferença é que no funcionamento deles isso tem um ganho social que eles gostam de ter, e se esforçam justamente porque gostam, mas pra gente não tem sentido e nem vantagem alguma. Só imitamos comportamentos típicos para SOBREVIVER.
Quando nos veem transgredindo normas, não apenas por não fazer sentido para nós, mas por que nos forçar a algo que não entendemos nos atravessa, machuca, nos consome - vamos ficando sugados até virarmos uma uva passa - eles ficam incomodados, isso os fere porque para pessoas neurotipicas certas normas são um bálsamo e alívio para o funcionamento deles.
A nossa transgressão só mostra o quanto somos domesticados enquanto sociedade, o quanto somos manipulados para um “bem” em comunidade.
Mas qual comunidade?
O que seria da sociedade se não questionássemos regras questionáveis? Somos o ponto de incômodo social, não por acaso.
Experimentei fazer uma coisa que costumo levar como exercício para meus pacientes na clínica: o exercício da perspectiva.
Perguntei ao chat GPT como seriam os critérios diagnósticos caso o incomum fosse ser neurotipico, sem nenhuma divergência, e eu confesso que me arrancou boas risadas, mas também mostrou como se olha para o cérebro divergente de maneira agressiva, como se fosse um erro existir como somos.
Esse é sempre um ótimo exercício para olhar para a realidade do outro com mais atenção.
Vejam bem, esses seriam os critérios diagnósticos:
Critérios diagnósticos para o transtorno de conformidade neurotípica:
Critérios A - Déficit na autonomia cognitiva e flexibilidade comportamental manifestados por pelo menos 4 dos seguintes:
1- Dependência excessiva de normas sociais, forte necessidade de aderir a convenções sociais mesmo quando são irracionais ou contraproducentes.
2- Tendência a validação externa, busca contínua por aprovação e conformidade com expectativas sociais, priorizando aceitação sobre a autenticidade.
3- Resistência a mudanças no status quo, desconforto significativo ou oposição ativa a mudanças inovadoras, mesmo quando há evidências de que elas seriam benéficas.
4- Pensamento Dicotômico, inclinação a categorizar situações e pessoas como certas e erradas sem considerar nuances ou complexidade.
5- Falta de hiperfoco em interesses específicos, dificuldade de sustentar atenção profunda e prolongada em um único tópico, alternando interesses conforme a tendência do grupo.
6- Comportamento de grupo exacerbado, forte necessidade de alinhar opiniões, comportamentos e crenças ao coletivo, mesmo quando contraditórios a experiência pessoal.
Critérios B - Padrões repetitivos e previsíveis de comportamento e comunicação, evidenciados por pelo menos 3 dos seguintes:
1- Uso automático de frases sociais, comunicação frequentemente baseada em fórmulas e expressões pré-determinadas sem avaliação da adequação contextual.
2- Dificuldade em lidar com o silêncio, necessidade constante de preencher lacunas na conversa, mesmo sem conteúdo relevante.
3- Preocupação exacerbada com status e hierarquia, tendência a estruturar interações sociais com base em posição social, títulos ou prestígio percebido.
4- Evitação de temas profundos ou divergentes, preferência por conversas superficiais ou socialmente aceitáveis, evitando discussões que desafiam normas.
5- Necessidade de aderência a rotinas coletivas, desconforto significativo ao ser exposto a atividades ou eventos fora do padrão estabelecido pela maioria.
Critério C - Impacto significativo no funcionamento pessoal e interpessoal:
1- Dificuldade em interagir com neurodivergentes. Estranhamento ou julgamento frequentes de pessoas que demostram padrões diferentes de comunicação e interação.
2- Ansiedade social mascarada. Forte preocupação com a imagem pública e o que os outros pensam, levando a esforços extensos para se encaixar.
3- Evitação de introspecção profunda, resistência a questionar crenças e comportamentos próprios, preferindo seguir padrões socialmente aceitos
Critério D - Os sintomas devem estar presentes desde a infância e impactar significativamente a capacidade de inovação, autenticidade e pensamento crítico do indivíduo.
Não é bizarro ler o seu funcionamento sendo colocado como uma sequência de problemas e transtornos?
Será que se estivéssemos mais preocupados em fazer da sociedade um lugar possível de se existir independente do seu funcionamento isso tudo seria necessário?
Aí você vai me dizer “ah, mas isso é utópico”. Sim, eu concordo, mas só é porque estamos diante de um funcionamento comum que não tem interesse em perder privilégios e aprender sobre inclusão. É aquela dificuldade de mudança no status quo que tem ali no critério diagnostico sabe? Esse desconforto com oposição ativa e mudanças inovadoras.
Pois bem, agora que eu encontrei minha voz, não abrirei mão dela, como já abri na minha infância e adolescência tentando me adaptar, agora eu estou pronta para continuar sendo esse ponto de incômodo social, vou continuar questionando o status quo e também estarei debatendo sobre inclusão sempre que puder.
E se você neurotipico ficar muito incomodado, recomendo começar os tratamentos de terapia específica para esse transtorno de incômodo com mudanças sociais e quem sabe iniciar medicação para controlar isso. (aqui estou sendo irônica, para quem não entende ironias)
Os neurodivergentes sempre existiram e vieram para ficar.
Beijos e cuidem das suas cabecinhas 😊
Especial! Obrigado por compartilhar essa construção e parabéns pela retórica. Foi de uma felicidade excepcional a construção da mensagem e a ilustração em questão. Poucas vezes vi ideais tao complexas serem passadas com tanta facilidade e em uma leitura tão prazerosa.
Você é e sempre será muito especial, capacidade incrivel de escrever sobre assuntos novos que na realidade são novos para nós que não entendemos, mas abertos para conhecimentos. Você é o meu amor🥰❤